quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Seu Rouanet e um mundo mais difícil






Vivemos em um mundo muito mais complicado. A minha geração pegou exatamente o começo desse bonde. Até o final dos anos 90, a única maneira de se inteirar de um assunto era via a mídia, fosse ela escrita em jornais ou periódicos, ou pelo radio e tevê. Você tinha de confiar em algum meio para ser seu canal de chegada de informações. O que acontecia no mundo? Você precisava esperar o horário dos jornais na tevê ou no radio para saber o que aconteceu no dia. Se fosse alguma coisa muito importante, interrompia-se a programação. Se não você poderia ficar sabendo só no dia seguinte ou no final de semana.

Hoje as coisas são muito mais rápidas. Se antes você ligava e deixava recado, hoje, se a pessoa não atende o celular ou não responde sua mensagem na hora, você já fica puto. Tudo se resolve na hora, em uma ligação, em uma mensagem. Do seu celular você pode fazer as compras de casa, pagar as contas, pedir um taxi, pedir a janta, ler um livro enquanto ouve um podcast ou uma radio. Melhor do que rádio, você cria a sua própria. Nada mais de esperar tocar a musica que você gosta, agora a musica que você gosta, e a próxima também, e a seguinte.

Com a velocidade atual, o seu julgamento tem de ser mais rápido. Você não pode mais perder tempo de se inteirar sobre um assunto para ai se posicionar. Você é bombardeado por informações e opiniões durante o dia inteiro. Qualquer rede social que você entre você tem algum dado extra para atualizar o que você sabia sobre algo. A gente lê menos. Lemos a chamada da notícia, porque notícia sai o tempo todo. É notícia em tempo real. Então, no final, julgamos e decidimos de maneira rasa. Não sempre, claro. Mas no dia a dia, nas coisas corriqueiras. O que não tem a ver diretamente com a gente.

Antes, para se entender de economia, judiciário, política, tínhamos de procurar notícias nos jornais, com cuidado. Eram poucos veículos, então quem ficava nos cargos acabava entendendo e se aprofundando mais sobre o tema. Vagas mais concorridas. Claro que hoje tem de se estudar muito ainda, se aprofundar. Mas quem faz o hard news, não necessariamente. E sempre lembrando, que o que importa hoje, é click. Quanto mais espalhafatosa a chamada, mais cliques ela vai trazer.

E com essa profusão de links, de chamadas, de notícias, uma pior que a outra, uma mais chamativa que a outra, fica difícil saber no que confiar (para mim, pelo menos), e também, muitas vezes, entender exatamente o que acontece. Eu sempre me preocupo com os julgamentos rápidos, ainda fico meio aturdido com quão voraz são os julgamentos atualmente, e o quão sem meio termo eles parecem ser. Ou se é, ou não é. Ou está certo, ou esta errado. E a sensação é que viramos uma grande briga de torcidas. Eu procuro não entrar nessas discussões, ainda mais na internet, onde é muito fácil se partir para um ataque e se esquecer o que esta sendo mesmo discutido. Mas nesta semana uma situação me fez querer participar.

A cantora Claudia Leitte aprovou na lei de incentivo a cultura federal, a Lei Roaunet, um projeto de um livro biográfico. O valor aprovado é de 356 mil reais. E uma parte da internet veio abaixo descendo o pau no projeto, na cantora e, principalmente, no governo e no ministério da cultura do país. "É isso que estão fazendo com o nosso dinheiro?", perguntam-se alguns. Mas sendo sincero, eu sei que pouca gente entende exatamente como funciona a Lei Rouanet, ou qualquer outra lei de incentivo a cultura.

A Lei Rouanet é do final de 1991. Ela meio que nasceu do fim da Lei Sarney, que tinha um caráter parecido. Apesar de existir desde o começo da década de 90, só começou a engrenar mesmo no final da década. Ainda assim, em relação ao que é arrecadado hoje em dia, os valores do final da década de 90 ainda são muito baixos. Podemos dizer que ela passou a ter alguma importância por meados dos anos 2000. E isso foi muito importante para a cultura do país. Fazer cultura no país era quase um chamado, um voto de sofrimento e pobreza. A não ser, é claro, que você fosse agraciado pelo apoio de uma das grandes televisões nacionais. As leis de incentivo vieram dar oportunidade para se criar e democratizar e diversificar a cultura no país. Ela é uma maravilha? Muito longe disso. É como deveria ser? Também não. Mas para a sorte da lei, ela sempre esteve nas mãos de pessoas muito interessadas em fazer a coisa funcionar de maneira direita e decente. Tiveram vacilos e escândalos? Sem dúvida!!! Muitos, só assim, agora, quase as 5 da manhã, eu lembro de dez sem ter de parar para respirar. 10 dos grandes, muito maiores do que o livro da cantora.

Mas o importante é entender como ela funciona, e isso é muito simples na verdade. Para inscrever o projeto, você precisar saber o que é o seu projeto, qual o objetivo dele, quais contrapartidas você oferece tanto sociais, quanto ambientais. Precisa também de um bom levantamento orçamentário. Nesse orçamento, você vai detalhar cada um dos cargos e gastos que você terá no projeto. E finalmente você precisa ter uma boa justificativa para explicar o porquê do seu projeto merecer ser aprovado. Uma vez que você envia tudo isso pelo sistema, você vai precisar enviar toda a documentação do projeto, isso é, todas as certidões suas ou da empresa que esta propondo o projeto, cartas de intenção de participação no seu projeto de todas as pessoas que você disse estar envolvendo, locais que você disse que vai fazer o seu projeto e afins. Tem bastante documento, mas não é um bicho de sete cabeças.

E ai, o que acontece? Bom, ai seu projeto vai tramitar em dois pontos, primeiro pelos pareceristas técnicos, que irão ver todo seu orçamento e dizer o que esta dentro ou fora do mercado, cortando todos os valores muito altos e baixando tudo para valores de piso. Depois, seu projeto vai para a CNIC, a comissão nacional de incentivo a cultura. Nela, pessoas de diversas frentes, como artistas, produtores e pessoas da sociedade civil, leem todos os projetos e votam quais estão dentro dos parâmetros e tem justificativas pertinentes de expandir e chegar a mais pessoas culturalmente. Nisso entra muito em foco se os valores que serão cobrados são populares e, principalmente, se vai expandir o público que desfruta cultura normalmente.

Ai, maravilha, aprovam seu projeto! Que felicidade!!! Mas no final, não. Isso é básico. Afinal, se você seguir os parâmetros, e for um projeto cultural de fato, aprovar é o caminho comum. Aprovavam-se tantos projetos por empresa que a Lei Rouanet mudou e agora só se pode aprovar 5 projetos por cnpj ou cpf por vez. E isso é um bom momento para falar. A Lei Rouanet deve ser a lei mais viva no país. Ela mudou muitas vezes e irá mudar quantas vezes mais forem necessárias. E por que? Porque o brasileiro é muito criativo e sempre encontra maneiras diferentes de se aproveitar de uma legislação. Mas a Lei Rouanet, ao invés de ficar parada, estática frente a este aproveitamento, vai e muda o texto para cortar as asinhas de quem se aproveitou. Muitas vezes isso pode acabar atrapalhando as pessoas que estão interessadas em realmente utilizar de maneira correta aquela lei, mas ao mesmo tempo. impede que pessoas se aproveitem. O exemplo mais recente é a mudança de tirar a possibilidade de aprovação de projetos que poderiam ser produzidos sem a ajuda da lei. Isso, sem dúvida, incluiria o projeto do livro da Claudia Leitte. Mas o projeto foi inscrito, provavelmente, muito antes dessa mudança da lei ter sido escrita, quem dirá, aprovada. E ainda não está em funcionamento. Então, por enquanto, tudo dentro da lei essa aprovação.

Mas e ai? O que vem agora? Bom, agora você precisa captar o dinheiro do seu projeto. E como se faz isso? Bom, ai não é fácil. Você precisa encontrar uma empresa que esteja em dia com o leão, como todos os pagamentos direitinhos. Além disso, a empresa precisa ter lucro (e por enquanto não pode estar em lucro presumido, mas isso também esta para mudar). Além disso, seu projeto precisa estar dentro do que a empresa esteja procurando. AH! E claro, a empresa só pode destinar para a cultura, 4% do imposto que deverá pagar no ano seguinte. Isso é, 96% continuarão sendo pagos para o governo.

E o que a empresa ganha com isso? Bom, ai varia muito. No seu projeto você já precisa preparar o que você vai poder oferecer para empresa como contrapartida. Muito é a mídia que será gerada a partir do projeto. É como se fosse investir em propaganda, mas sem colocar a mão no bolso. Além disso, muitas vezes se fazem ações de marketing integradas.

E onde está o problema disso? Oras, está no fato que você esta dando na mão das grandes empresas do país o destino da cultura do país. Elas escolhem os projetos que serão produzidos e os que não. Isso é péssimo. E isso é uma das maiores preocupações do ministro da cultura, Juca Ferreira. Por isso ele criou o FNC, o fundo nacional da cultura, que é um fundo que agracia projetos culturais com o dinheiro para eles serem produzidos. Quais os critérios e como se inscreve? O processo é parecido, mas os agraciados são normalmente projetos fora do eixo Rio-São Paulo, para privilegiar todas as áreas do país e as mais diferentes áreas da cultura. Isso é bom, porque divide a função com as empresas. Mas novamente, o destino da cultura fica na mão de alguém ou algum órgão. A diferença do estado e das empresas para a cultura de um povo é muito pequena. O ideal é que a cultura fosse autogerida e autossuficiente. Mas não é. Ainda não.

Além disso, outro medo do ministro, é que a lei esteja deixando os produtores muito mal acostumados. Afinal, se começa um projeto só quando tudo já esta pago e todos os salários certos. Qual o compromisso e a busca pela formação de público ou pela criação de caixa para que a próxima produção não precise de Lei? E por isso ele vem procurando mudar e, quem sabe, acabar com a lei um dia.

Mas como pode se ver, a lei não dá dinheiro diretamente para projeto nenhum. A aprovação segue apenas parâmetros pré estabelecidos e levantamentos de orçamento e justificativa. Depois disso, tudo depende muito do produtor e ainda tem muito trabalho pela frente até o projeto sair. Nada é garantido. Existem muito mais projetos aprovados que nunca são captados, do que projetos que são captados. E a grande maioria das empresas desconhece, ou tem medo, ou não quer nem entender o funcionamento da lei.

O que é cultura? Quem pode falar isso sem deixar lados importantes de fora. A cultura é conceito fluido e que muda muito rápido, na mesma velocidade que nossa vida muda. Expande e inclui. As leis de incentivo tentam ajudar todas estas áreas e dar alguma chance de projetos florescerem, sem preconceitos e sem tentar dizer o que é e o que não é cultura, sem impor e sem direcionar. Todos os projetos tem a mesma chance de ser aprovado, se bem feito e trabalhado e o dinheiro público tem também de ser empregado na cultura. E vale lembrar, essas leis de incentivo existem pelo mundo todo, com funcionamentos diferentes. Nos Estados Unidos, muitas cidades e estados abaixam ou abatem completamente, os impostos de cinema ou teatro, para trazer as grande produções para dentro de suas fronteiras. Os impostos são dinheiro público também, mas eles abatem estes valores por saber a quantidade de postos de trabalho que abrirão e a quantidade de dinheiro que girara em torno. O processo não é o mesmo, mas também tem dinheiro público sendo deixado de lado para produções culturais.

É preciso sempre buscar entender o funcionamento das coisas e seu histórico para não se julgar uma situação apressadamente e deixando espaço para não se ser direito ou correto. Claro que depois de ler tudo isso, você ainda pode não querer um livro da Claudia Leitte, afinal, eu também não quero, mas tirar a opção dela utilizar do mecanismo que é aberto a todos é errado, pelo menos por enquanto. A lei vai mudar muitas vezes ainda, sempre tentando proteger o interesse de todos e tentando dar poder a cultura nacional e não deixar o dinheiro publico ser mal utilizado.